Raymond Domenech, foto da Wikipédia
Apontamento a propósito do Dia Mundial da Luta Contra a Corrupção, 9 de Dezembro.
Surgiu hoje uma pequena notícia, meio escondida, no jornal desportivo Record, que dava conta do prémio que o treinador da selecção francesa de futebol ganhara, devido ao apuramento da França para a fase final do campeonato do mundo de futebol de 2010, na África do Sul. Raymond Domenech recebeu 800 mil euros por esse feito, extraordinário de certeza!
Mas tanto dinheiro a propósito de quê? O treinador não foi decisivo para o sucesso do grupo que orientou que, como sabemos, conseguiu a passagem à fase seguinte devido à actuação fraudulenta de um dos seus jogadores emblemáticos, Thierry Henry. Se alguém merecia o prémio seria seguramente o referido jogador que ultrapassou as limitações desportivas da sua equipa, jogando à margem das regras definidas, conseguindo enganar o árbitro e, com isso, afastar a Irlanda do Norte da competição. A não ser que faça parte das atribuições dos treinadores ensinar e fomentar as actuações faltosas e irregulares dos seus atletas. Nesse caso a choruda bonificação (que parece ter escandalizado um ministro francês) foi bem entregue, porque a fraude foi consumada na perfeição.
Jogando a bola com a mão sem que os árbitros o notassem, Henry permitiu que a sua equipa marcasse um golo decisivo. Foi uma prevaricação observada no momento por milhões de testemunhas, menos pelos que a poderiam sancionar no campo. Por outras palavras, na altura do engano o burlão foi desmascarado pelos burlados, frente a testemunhas mais que suficientes para confirmarem o caso, mas não foi visto pela polícia que o deixou impune. Posteriormente, através das imagens televisivas repetidas até à exaustão, toda a gente pôde confirmar o truque manhoso.
As estruturas supranacionais que controlam o futebol profissional e que são supostas defender o desportivismo, a justiça desportiva, a igualdade entre todas as equipas, a transparência de actuações de todos os intervenientes e punir os infractores às regras do jogo, vão deixar passar em claro esta situação irregular. A França vai mesmo disputar a final do campeonato do mundo e nada do que a Irlanda do Norte possa fazer mudará esse facto.
Poder-se-ia dizer que se trata de um assunto do foro meramente desportivo, secundário. Sabemos que não é nada disso. O futebol é um indústria de divertimento que movimenta fortunas, emprega muita gente, é extremamente mediática. Manter as equipas é caro e todos os clubes e Federações esperam retorno dos investimentos feitos. Quem vai indemnizar a Irlanda do Norte pelos proventos perdidos? A França? A FIFA? A UEFA?
Por outro lado, as cumplicidades do futebol com a política são evidentes, ao ponto de se celebrarem os futebolistas como heróis e de se defender despudoradamente que os sucessos das selecções de futebol fazem elevar a autoestima das populações, utilizando-se o espectáculo desportivo como descompressão social e alívio de tensões mais crispadas. Os países enchem-se de bandeiras numa euforia mediatizada. Os jogadores atingem o estatuto de modelos, o que é uma evidente falsidade, mas os órgãos de poder (incluindo os mediáticos) agem como se o fossem, através do tratamento reverencial que lhes dão.
No caso que motivou este comprido comentário, que modelo pode ser Thierry Henry e os outros heróis do futebol? Que valores se veiculam e apreendem de todo este pântano e que podem ser imitados pelos cidadãos comuns? Evidentemente, o crime compensa mesmo nas barbas da autoridade, desde que esta não esteja atenta e ainda se é premiado pelas mais altas instâncias do poder, porque se valoriza o sucesso desprezando as regras sociais de convivência.
Portanto, se o aluno copiar nos testes, se conseguir que outros lhe façam os trabalhos, se pressionar os profs e os colegas na altura das avaliações, se os profs mantiverem rotinas ineficazes, actualizações pedagógicas e científicas deficientes, se a reforma do ensino for um conjunto de normas impraticáveis mas com aspecto modernaço, se os pais se alhearem de tudo isso, qual é o problema? Desde que se consiga não ser detectado e disfarçar o que não deveria ser aceite, até pode resultar em bom benefício.
Pode sempre haver uma mãozinha que ajeite as coisas...
Este tipo de corrupção é mais insidioso do que muitos dos que actualmente envolvem figuras públicas, porque não envolve um acto deliberado e previsto de troca de influências e de compra de favores. Estes podem-se resolver se as estruturas policiais e jurídicas funcionarem. A mão de Henry revela a incapacidade das estruturas do poder, as políticas, de actuarem sobre os seus próprios agentes, descomprometidamente, com sentido cívico e democrático. Mais do que a correcção dos actos, defende-se o domínio dos postos de comando e dos privilégios que lhes são inerentes.
Parece, portanto, que estaremos a lidar com a autocracia enquanto imaginamos viver numa Europa democrática, em que a eleição dos dirigentes políticos levaria a que as outras instituições de poder se regessem por práticas eticamente correctas.
foto de L Miranda
L Miranda
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
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1 comentário:
Um espécie de alegoria pouco edificante. Já se sabe que a Máfia serve de inspiração a muito má gente. E parece que são os maus quem governa os destinos do mundo.
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