segunda-feira, 3 de maio de 2010

Numa espreitadela




Tudo começou na cama junto à janela onde repouso o meu corpo cansado, procurando descansar a mente dos ruídos humanos no exterior. Há um mergulho tão profundo, uma entrada tão longínqua, nos meus pensamentos que o tecto branco por cima de mim parece ficar pintado com as cores do que penso.
Tudo muda quando num súbito enjoo, por tanto ver o tecto girar, tanto ouvir as pessoas gritar, que serenamente me sento, abro a janela e olho o céu nocturno que se estende infinitamente além das grandes montanhas brancas. Nunca presenciei um tal cenário. Das ruas barulhentas e cheias para o céu há pouco mais que a luz das estrelas; tantas e tão imensas que parecem centenas de orifícios no chão do Paraíso. Viver é algo reles e miserável, cheio de procuras inúteis de tornar o feio e triste em algo que valha a pena fazer, mas a vida essa, é bela, cheia de coisas que fazem valer a pena vivermos – mesmo que na miséria.
Tudo me aborrece quando o barulho em gritos e mal-dizeres e histerias me enchem os ouvidos. Quero sair e ouvir o silêncio, sentir o frio, ver as montanhas, cheirar a rocha húmida e provar a secura dos meus lábios. Quero sair. Vou sair! A noite está fria, mas o meu corpo está quente, envolto em roupas e calor, muito embora eu quisesse me despir, sentir o meu corpo envolto na realidade, atravessar a fronteira-riacho, tropeçar na neve e gelar. A ponte frágil de madeira, vejo-a já perto na rua estreita que desce. Vou para o país vizinho e ando durante muito tempo até chegar aos pés da montanha onde me encosto contra a rocha inclinada e vejo o quadro celestial perante mim, grande e majestoso. Porque há tanta ingratidão? Tanta futilidade e desprezo? A dor que me aperta o coração é do gelo que está sobre a pedra contra as costas e as lágrimas são o frio e a alegria de poder contemplar tamanha beleza.
E as montanhas essas? Grandes reis e rainhas que impõem o medo e o respeito desde os velhos tempos de outrora, refúgios de solidão para os infelizes, morte para os suícidas e aventureiros desafortunados, parecem olhar para mim, julgar-me, esperando pelo vento para ditar a sua sentença. Seja o juízo o meu fim, enterrado naquela neve, ou o privilégio de observar, com olhos de poeta-filósofo, tamanho cenário de grandeza, pouco me importa. Eu agora existo, não vivo. As montanhas decidiram e o vento passa gélido, breve e fraco. Vivo por mais uns segundos.
Tudo me cansa agora, de tanto pensar, de há tanto tempo ter os olhos abertos, de já tanto ter vivido em tão pouco tempo. Ali onde testemunho um profundo silêncio começo a ver o céu a girar por cima da minha cabeça; as estrelas, o céu, as nuvens e a montanha misturam-se e num instante caio na escuridão absoluta. Um espaço, um corpo é tudo o que há. Um corpo, um vazio é tudo o que é.
E tudo terminou com o raiar da aurora matinal. Eu sorrio mas a dor que senti no coração era de melancólica alegria e as lágrimas, de triste divertimento. Estive aqui e estive bem, mas estive eu.
Fernando Tomáz

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