O mapa do tesouro
Durante o ano lectivo que agora termina, tive o privilégio de conversar com várias colegas sobre um tema que me é caro: a Literatura. Dividiu-nos a questão de haver ou não uma época (ou século) de ouro da Literatura e, em caso afirmativo, qual. A questão ficará sempre em aberto e assim é que tem piada. No entanto, eis a minha defesa – sinuosa – do século XIX como o período mais fecundo da Literatura.
Adoro um pequeno livro intitulado Barbárie da Ignorância (meu Deus, havia tanto para dizer acerca da ignorância e dos bárbaros modernos e cinzentos, vorazes e colocados nos lugares mais insuspeitos, escolas incluídas…), onde George Steiner, professor de Literatura Comparada na Universidade de Genebra e professor honorário do Churchill College da Universidade de Cambridge, sob a forma de entrevistas, partilha connosco o seu pensamento. Adoro-o porque concordo com o que Steiner defende, claro está. E o que diz Steiner? Entre outras coisas, que o século XIX é de facto o apogeu da Literatura. Mas, afinal, pergunto eu uma e outra vez, em que outro século é que encontramos uma tão grande colecção de pesos pesados vencedores de quaisquer super-prémios Nobel como no século XIX? Logo a abrir, Puchkine e, embora eu não seja grande apreciador de poesia (uma falha enorme, eu sei), adoro os seus contos. Neles mergulhamos de cabeça num mundo do qual muitos de nós ignoram tudo; o da outra Europa, a do Leste; cristã mas ortodoxa, com uma infinidade de diferenças em relação a nós, ocidentais… E depois Tolstoi, agora reeditado em Portugal com traduções competentíssimas, e o grande Dostoiévski. Não posso deixar a Rússia sem uma palavra para Turguéniev, hoje muito difícil de encontrar numa livraria, mas que no seu tempo chegou a vender mais que os conterrâneos atrás citados. À falta de Turguéniev, o autêntico, leia-se um magnífico livro escrito por Robert Dessaix, O Crepúsculo do Amor, que, além de ser uma biografia do autor russo, é também um livro de viagens pela grande mãe Rússia, passada e presente. Tudo escrito por um australiano que em plena Guerra Fria cismava em ir estudar para a União Soviética.
E depois há Sthendal, a inaugurar o Romantismo com Armance, há Oscar Wilde (como não gostar de O retrato de Dorian Gray?) e o seu humor fino, a escrever contos arrebatadores com o tamanho de uma página…
Numa divisão mais abaixo (futebolês num artigo pretensioso!) encontramos Robert Louis Stevenson e a maravilhosa Ilha do Tesouro ou A Flecha Negra, que os adolescentes já não lêem, e Arthur Conan Doyle e o mais famoso detective do mundo, entre outros.
Quanto aos Portugueses, que tal Camilo Castelo Branco e A queda de um Anjo? Muito divertido e muito actual. Os políticos cá da casa não mudaram nada. Júlio Dinis e As Pupilas do Senhor Reitor… tudo menos um livro aborrecido. Estou a puxar a brasa às sardinhas que mais gosto, eu sei. Perdoem-me as sardinhas que ficaram de fora mas eu não leio muitos autores portugueses (por ser uma vergonha, guardo este segredo).
Continuando… Goethe (eu sei que nasceu no século XVIII mas Fausto pertence ao XIX), Eça de Queiroz, Almeida Garrett, Edgar Alan Poe e as suas muitas “histórias extraordinárias”, Mark Twain e Tom Sawyer, Rudyard Kipling (mestre do conto curto, prémio Nobel de 1907, mas com o grosso da obra publicada no século anterior, não estou a fazer batota), H. G. Wells com as quatro obras decisivas escritas antes de 1900, Bram Stocker e Drácula, enfim, a lista é grande, em todos os sentidos. Não é necessário alongar-me porque já vos convenci!
Steiner diz que um clássico é uma obra, neste caso um livro, que lemos e relemos e voltamos a ler, à medida que os anos passam. São obras que se permanecem actuais. De Goethe a Tolstoi, quase todos os autores do século XIX continuam frescos, não corroídos pelo tempo. Enfim, não é necessário alongar-me mais. Viva a Literatura do século XIX! Defensores da Literatura do século XX ou da de qualquer outro tempo, erguei-vos! Antes ou depois das férias.
Ps: não resisto: para os que nunca deram uma oportunidade a Dostoiévski por o julgarem pesadão (de facto o homem tinha um aspecto pesado), sempre debruçado sobre as grandes questões/fraquezas da Humanidade para as quais muitas vezes não temos pachorra, procurem por A aldeia de Stepantchikovo e os seus habitantes ou por Um sonho do tio. Deliciosos, mordazes e divertidos.
Orlando Lourenço